sexta-feira, 28 de abril de 2017

a passar em rodapé

A noite está escura. Gosto de vir para aqui, nas noites escuras, ver as vidas a serem vividas. Não vi o gato que me vigiava e este encrespou-se assim que me aproximei. Acalmei-o com um pedaço de pão que se esfarelava no bolso, depois sentei-me e ele sentou-se a meu lado, como que reconhecendo que este observatório de vidas improvisado era suficientemente grande para dois voyeurs nocturnos.
O filho da dona Arlinda fuma às escondidas na marquise, o Serguei por vezes embebeda-se e bate na mulher que é cabeleireira e precisa da vista. Quando não está bêbado é um amor, gosta de ajudar o sr. Fernando a cuidar do jardim e de enamorar a Corália da mercearia. A filha do Serguei é bastante nova, demasiado nova para fugir pela escada de incêndio para ir fumar e fazer outras coisas começadas com efe, com o filho da dona Arlinda. Eu e um gato preto, gozamos a noite e comemos migalhas de pão, enquanto vemos as vidas deles a passarem em rodapé pelas nossas. 

terça-feira, 25 de abril de 2017

amar no campo

O homem faz da terra o que lhe apetece dela. O campo devolve tudo ao homem em dureza, encortiça-lhe a pele, greta-lhe os lábios e tira-lhe o encanto de ser delicado. Esse campo é o mesmo que devolve tudo em pobreza ao homem, naquela réstia de encanto de ser dedicado. Germina da terra e cai por terra a vontade do que for para colher. Germina no vale o que não pegou na serra, nasce da terra o que parte dela vem para morrer. As cepas estão viçosas, as árvores floridas, a batatas já foi sachada e as cabras balem à chegada da mulher amada. O homem faz do amor o que apetece dele. O amor, ou seja o que for, devolve tudo ao homem naquela réstia de encanto de ser dedicado, não por vir da terra, mas por ser mais fértil amar no campo.

sexta-feira, 21 de abril de 2017

o sítio de ser sozinho

Há um sítio que não precisa de morada, faz cabana da alma e é sempre nesse caminho que o corpo procura a calma. Calma de respirar sozinho, beber um copo de vinho e ouvir o vento que vem do silêncio e do cheiro a azevinho. 
Não tem número nem caixa do correio, não tem estrada nem passeio, faz de conta que não conta ter o corpo num sítio assim. 

E qual é o teu sítio de ser sozinho?

quinta-feira, 20 de abril de 2017

todos sabem mas ninguém viu

Nem todos os crimes, só por serem crimes, merecem o castigo de crime, à bala de seiscentas verdascadas de vime nas costas. 
Sabe-se que ele matou, sabe-se que matou por prazer e para estar bem com a sua consciência e até com deus. Sabe-se que não foi meigo, que não lhes tirou a vida só para deixarem de viver, que não lhes tirou a vida para deixarem de ser, aquele estorvo que os viu nascer. Sabe-se que ele lhes infligiu dor, uma espécie de dor tão forte que o cérebro pede à morte que o conforte. Foram três intermináveis dias de dor. A meio da tarde do segundo dia, que até estava soalheira e bonita, eles pediram clemência ao homem, que tivesse a decência e os matasse depressa. 
Sabe-se que ele continuou, que a dor não parou até o sol querer parar aquela herança, que a vida lhe deu em forma de vingança. Sabe-se quem matou e quem morreu. Sabe-se que eles morreram de tanta dor. Sabe deus como aqueles marginais lhe tinham deixado o corpo da neta ao destino violado de uma valeta. Todos sabem, mas ninguém viu.

terça-feira, 18 de abril de 2017

confiança

O prazer de confiar vem das tardes quentes que nem sequer precisávamos um do outro, mas que nos tivemos apenas naquela coisa de ir passando pedaços de tempo à velocidade que uma tarde quente nos exige por passar por nós. Se amanhã estiver frio e se o portão estiver aberto, sei perfeitamente que te posso dar por certo, naquela réstia de verdade que devo precisar de ti. O prazer de confiar vem da verdade, da verdadeira saudade que o passar do tempo deixou por passar. O prazer de confiar vem da mesma verdade com que se lambe as mãos, o suor ou o sangue que escorre à velocidade que uma tarde quente exige por passar por nós. 

quinta-feira, 13 de abril de 2017

aluguer de companhia

Enquanto a mulher fazia os tratamentos de quimioterapia, ele acomodava o corpo e a consciência, num banco de madeira sujo e duro, que nestes prognósticos sórdidos de morte, sabe mal à mente que o corpo esteja bem instalado. Vem a culpa de estar sentado, de não ser ele a estar agoniado, de não ser ele a estar a prazo, de não conseguir livrar a mulher do afrouxar do compasso. Os bolsos das calças vêm de casa atulhados de migalhas de pão, chamam os pombos, aliviam os tombos e as quedas da solidão. Sai barato este aluguer de companhia que o pão não precisa de ser do dia. Enquanto o pão dura a companhia perdura, o esvoaçar das penas faz dele um homem de dores mais pequenas. Há um pombo que fica sempre para depois da sofreguidão, como que a devolver a migalha de sossego à solidão. Assim que a mulher chega, sempre debilitada, o último pombo de companhia afasta-se, deixando o reconforto de um regaço fazer de casa, que afinal a solidão de um homem sofrido, pode caber debaixo de uma asa.

passar ao lado de um vizinho

Os vizinhos falam com os olhos e com os acenos, numa dose certa de cumprimento que não pode ser de mais, mas também não pode ser de menos. Hoje dona Arminda olhou-me diferente de ontem. Em passo acelerado vociferei como sempre – dona Armiiiiinda – como se ela fosse para mim um princípio de um momento e que a minha voz ficasse a pairar no ar e a seguisse para todo o lado, fazendo-lhe merecida companhia durante o dia. Hoje ela não respondeu e num acesso de mais por menos sem aquele excesso de cuidar, eu sabia que os olhos dela me pediam ajuda mesmo sem se lembrarem de quem eu era. Naquele momento, ela não sabia quem era, não sabia quem foi, onde morava e se ainda tinha alguém que a amava. Naquele momento, eu para ela era um desconhecido e ela para mim passou a ser um pouco mais que uma simples vizinha, numa dose de cumprimento que foi própria daquele preciso momento. 

terça-feira, 11 de abril de 2017

o que o tempo faz aos olhos

São as fendas de um rosto que lhe dão o gosto de ser mais, de ser mais que os outros, de saber mais que os outros que se põem em bicos de pés e ainda não têm aquela força nos dedos que o cultivo da terra lhes dá.
O que os olhos já choraram, podiam inundar os lábios e da boca não conseguir mais respirar para além de uma lufada vinda do fundo da alma. Desses mesmos olhos soltam-se palavras incrustadas que a boca recusa divulgar, palavras ditas em surdina, não por serem segredos, mas por se tratarem de medos do que a vida lhe pode reservar. O sol encortiçou-lhe a esperança e a ligeireza que tinha na dança esqueceu-se que já foi criança e deixou de rodopiar. O corpo pede mais calma, enche-lhe a alma ferindo-lhe o rosto, as fendas fundas que lhe dão o gosto de ser mais, mais que os outros, mais que ontem e até mais que o desgosto.

sexta-feira, 7 de abril de 2017

passado

Vem de trás a mania de trazer o que já não faz falta. Vem de trás a vontade de parar, de pé em riste a fazer a falta, deixar o tempo coxo até ficar roxo, numa maca esquecido à espera que lhe deem alta. De tanto olhar para trás, não fui capaz de perceber que vem sempre do passado a vontade de lamber as feridas, esquecê-las em cinzas depois de ardidas. Lembro-me da linha que me trouxe até aqui e eu hoje sei que não quis ser ninguém, que vem do passado a história que um homem tem e não é de hoje a vontade de ter nascido em Jerusalém ou ainda mais além, que na história o que a distância pode tirar à vista ficará para sempre na memória. 

quinta-feira, 6 de abril de 2017

Pergunta para queijo: quantos filmes realizados por woody allen consegues encontrar no texto?

Toda a gente diz que te amo, através da noite vais conhecer o homem dos teus sonhos e tudo pode dar certo. O sonho de Cassandra ou uma outra mulher, que entre maridos e mulheres na intimidade, nem guerra nem paz, apenas recordações de setembro ou de Manhattan, onde nas sombras e nevoeiro, os vigaristas de bairro disparam balas sobre a Broadway, fruto de crimes e escapadelas de uma poderosa Afrodite. Aquela meia-noite em Paris, desde Alice num abc do amor ao match point do homem irracional, uma comédia sexual numa noite de verão, como que magia ao luar de celebridades, para roma com amor de uma qualquer blue jasmine. 





Ao responder acertadamente, habilita-se a ganhar uma magnífica porção de rigorosamente nada. Não perca esta maravilhosa oportunidade.

quarta-feira, 5 de abril de 2017

ciúme

Eu vi o céu a abrir-se à tua passagem, e com aquele exibicionismo barato, vi o brilho que reflectia dos teus olhos. Talvez por não ser capaz de tal façanha, atacou-me o ciúme de saber que não chego primeiro ao cume, mesmo recorrendo à manha empertigada de fazer batota. Diz-me, como querias que um homem sem cabelo, fizesse de Sansão, e à força bruta das mãos rasgasse o céu com a mesma leveza que te levantou o véu? Custa-me que sejas capaz de me trocar por tais banalidades, que abrir o céu, não é maior que jurar amor eterno e por mais terno que te parece esse gingão de céu, eu também posso parecer bem-parecido, se para isso tiver que usar chapéu.

terça-feira, 4 de abril de 2017

regressar

Parece que o sol também sabe que o homem sempre regressa a casa, caindo devagarinho o sol, esse homem e a vontade de abraçar a mulher e os filhos. Os olhos vão fechando de cansaço e ao mesmo tempo os sorrisos das crianças vão aumentando de sonoridade e de ansiedade. Falta pouco para que a buzina do camião faça soar o jantar e a partida das crianças numa corrida infernal de serem as primeiras a chegar à porta. O camião costuma bufar de cansaço quando é desligado e quase ao mesmo tempo o pai chegará à porta com os abraços fortes, beijos prometidos e algumas prendas de França. A mulher, mais comedida, sente o coração apertado de cuidado. Ela sabe que um dia pode a buzina não soar à vontade de o beijar. Pode o camião teimar em não chegar, teimar em não trazer de volta quem nunca quis partir. 

domingo, 2 de abril de 2017

fim da estrada

Querer morrer de amor, pois se tiver de ser seja o que for, mas que seja rápido e o homem poupado de tal dor.
Foi-se a distância da estrada que o que resta dela pertence à vontade de atravessá-la. Não soube a mulher receber prendas maiores, como Maria recebeu, não soube o homem vender a alegria, que de graça não se vende a felicidade que Maria lhe deu.
Nesta estrada sem sul e pouca sorte de norte, se ninguém vier de baixo, de que serve a morte ou a lágrima, se não for lambida por quem vier de cima.
Se ouviste dizer no fim dessa estrada, que a tua alegria vale menos que o amor dos outros, faz de conta que não contam os quilómetros desde a felicidade que Maria te deu.