sexta-feira, 31 de março de 2017

matar por matar

Saiu de casa com o propósito único de matar, mas um matar diferente daqueles que move as vinganças. É um matar sem ira, uma vida que se vira num segundo, uma pouca sorte deste inocente que ficou sem mundo e de morrer sem saber porquê, não foi por isso que não deixou de ir ao fundo. Mata ao acaso sem fazer caso que o sangue sabe todo a ferro e debaixo da ponte passa o camião que ilude o berro, de dor e desta imensidão de calor que o derramar do sangue lhe dá. Já sabe a sangue e hoje o corpo nem parece morto da recusa de fechar os olhos, resta cruzar-lhe os braços e ceifá-lo da ponte como lhe ceifou uma faca na fonte. Que alguém o descubra na via pública, que algures por aí estará uma mãe que o quererá chorar. 

quarta-feira, 29 de março de 2017

vida parada

Talvez se um dia a vida parasse de parar o aconchego que se espera dela, não fosse preciso eu construir um foguetão, pela própria mão que me acene depois de partir daqui. Talvez se um dia o dia parasse, com ele parado eu me calasse e não fosse preciso construir um muro ao punho, duro que me magoasse depois de o ter erguido à toa. Talvez se um dia a terra parasse de girar, eu conseguisse voar sem asas, conseguisse migrar sem que soprasse o vento, conseguisse sobrevoar o desalento de voltar a encontrar o mesmo homem que partiu. Talvez se um dia, no final do dia, o sol se quisesse ir deitando, à medida que o fogo de partir se aproximasse da água parada da poça, pequena de tamanho, grande na troça, de querer reflectir um homem a querer fugir.   

terça-feira, 28 de março de 2017

de marcha-atrás a mudar passados

Agora é mais difícil convencê-lo que, por mais depressa que ande em marcha-atrás, nunca chegará àquele pedaço de passado que não se apaga por se ter enganado. Foi nessa noite maldita que o volante virou demais, e à farta colheita ceifou o que ainda verde o amor lhe deixou, que é difícil acreditar que no mesmo caminho ainda possa haver uma alma que se perde. Pena que as árvores mais altas aqui não vingaram, para taparem o céu azul e o bom tempo que vem de lá, como facas afiadas no peito desse homem que não tem culpa que a escolha reclame o defeito. Soubesse ele desta escuridão e tinha fingido um finge-que-vira-mas-não-vira, um destes fingimentos que o livrasse da ira, dos seus próprios arrependimentos. Ele que engate a primeira e acelere sem derrapar, que à frente a curva é apertada e sem demora vira-que-vira para o mesmo sítio de voltar a escolher os caminhos de outrora, sem saber dos buracos que podem ter agora.    

sábado, 25 de março de 2017

O segredo da felicidade

Com os aquecedores arrumados em sótãos cheios de segredos bem guardados, não há nada melhor, para combater o frio do tempo e o gelo no coração das pessoas, que dar colo a um filho cheio de saudades nossas. Claro que só posso ser feliz assim.

sexta-feira, 24 de março de 2017

Arder no inferno

Os bêbados costumam aguentar melhor a falta de amor do que os sóbrios. Nem este homem, que mal se sustinha de pé, conseguiu rasgar aquele bilhete de amor que tanto o tem feito sofrer. Amassou-o, mandou-o ao chão e pisou-o, como sempre pisara as beatas dos cigarros que o acompanharam no tempo e que tanto prazer lhe deram. Ele sabe de vinho como sabe de amar, e sabe também que não se pisam os bilhetes de amor, que não é por pisar que lhe vai limpar aquele ardor igual ao de um vinho carrascão. Virou-lhe as costas fingindo indiferença, o bilhete e o amor que esmoreçam no chão, mas fez-lhe diferença quando o vento soprou mais forte e o quis levar consigo. Agachou-se e sem que ninguém o visse, voltou a apanhá-lo como se se tratasse de um pássaro que ainda não aprendera a voar. Alisou de novo o bilhete de amor, como se lembrava de fazer, naquelas noites de natal, com as pratas dos chocolates em forma de sino. Beijou-o e voltou a colocá-lo no bolso do casaco, roto de tanto entra e sai daquele pedaço de papel. Ele sabia que só se deviam pisar os bilhetes de amor que se quisessem voltar a guardar, que para destruir para sempre é melhor queimá-los, como ele sempre fez com as beatas e os cigarros, mesmo depois destes lhe terem dado tanto prazer no passado.

quinta-feira, 23 de março de 2017

quando o vinho se eleva acima de deus

a esperança morre como morrem aqueles peixes dourados do aquário que está por cima da estante de livros. À tona de água, de barriga para cima, a boiar do finar da vida ou do rebentar de tanto comer dela. E depressa, que a pressa da esperança não dá bom viver a ninguém. É quando a esperança se fina por completo, que o vinho se eleva acima de deus, porque é de pé que o vinho se entorna e só depois se verga o corpo com o peso bruto do fruto da imaginação.  Com deus, no princípio vergam logo os ossos à vassalagem, dobram os joelhos à passagem de quem nunca viu o que existiu para além do tal fruto da criação. De pé, é melhor que a fé venha mesmo do vinho, que aos velhos custa a dobrar os joelhos e do vinho não custa nada dizer a deus, ou à esperança ou a qualquer outra coisa que teima em existir para lá do que a vista consegue ver.