sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

o Homem é o único ser, que consegue ser verdadeiramente humano



Serei sempre o mesmo homem. Mesmo depois de ter matado o meu melhor amigo. Não fui eu que lhe tirei a vida, apenas me esquivei de o salvar. Se o salvasse, seria eu a morrer. Não precisaria de o ter empurrado. De tanta alegria comungada entre nós, escusávamos de partilhar a covardia humana, de forma tão brutal.
Foi o mar que o engoliu, não desprezando que se tratava de um homem. Que fará este mar, com mais um homem traído pelos seus? 
Cuspi-lo-á, quando se aperceber do sabor amargo que tem um homem, traído pelos seus. 
Este tipo de ser, deixa um sabor de angústia na boca, que não deixa engolir.
Cuspi-lo-á, para que a mãe o reveja, que chore por ele e que o enterre, que o mar não enterra ninguém. 
Calo-me, para que ninguém me pergunte se sou também eu um homem traído pelos meus. 

Eu, serei sempre o mesmo homem. Também me custa a engolir a água salgada. 



E.M.Valmont

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Servidão humana

incomoda a mão estendida
destes pobres à indiferença
das elites sem a diferença
de ser homem depois de vida

bocados de pão atirados
silêncio da boca faminta
ecoam nos muros de tinta
fresca a voz dos acossados

mais um corpo que se quer magro
da mente que se quer demente 
não se ouve a escória da gente
desta gente de prazer agro

resta fugir da vergonha
de ser gente enfadonha
a morte chega mais cedo
à elite que tem medo

alimentem os pobres
das migalhas dos cães
dos ricos
dos beijos de suas mães
alimentem os pobres
que eles morrem-vos em cima
do tapete persa que se encima
na eloquente servidão humana


E.M. Valmont

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Um farol de noite

cai copiosamente a noite
por entre a espuma dos dias
mete medo o nosso medo
por vezes está escuro cá dentro

mete medo o medo dos outros
por vezes está escuro lá fora
por entre o rebombar da noite
cai docemente o que foi dia

faço girar a luz
acesa por dentro
que se guiem por fora
os marinheiros de outrora

espero que não atolem
não raspem o casco na rocha
de tanto sangrar
há marinheiros que morrem

mete medo o nosso medo
acendemos a luz de noite
ilumina a alma prata do cobarde
coragem ao homem que se afoite

e depois acalma a fúria
baixam as ondas as defesas
erguem-se os nossos filhos
à avidez do frio e dos remoinhos

aprender que de dia
não se erguem faróis
são como campos de girassóis
que rodopiam na apatia

de não saber
ser...

noite

E.M.Valmont

domingo, 12 de janeiro de 2014

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Vender sonhos de graça

sem sonhar
não é possível vender sonhos
mesmo que sonhar
seja pouco mais que chutar
uma bola que vem desviada
vinda do nada

mesmo que sonhar
seja aquele pedaço a mais
que difere dos quase iguais
sem ter vergonha de chorar

vender sonhos de graça
faz da graça a própria vida
que embora sofrida
tem graça de ser vivida

não se sonha a própria morte
nem se vende o último sonho
mesmo de graça ao preço da sorte
um menino a acordar ainda risonho


na morte de um vendedor de sonhos


E.M. Valmont

sábado, 4 de janeiro de 2014

Dez corvos e uma nau

Era meia-noite e metade de uma noite era demais. Deitado na cama, tapava-me apenas com o cobertor esburacado pelas ilusões. Eu teria também a alma esburacada, não pela desilusão, mas pela presciência de que a metade da noite não chegaria a fazer um dia.
Estava ali, porque me quiseram calar. Estava ali porque me quiseram cegar. Tinha apenas o direito de cheirar a minha urina. E o desejo de um homem, pode fazer a urina cheirar a maresia. Diziam os velhos que era impossível sair dali. E o desejo de um homem... pode o que a alma quiser.
Um dia haveria de sair, para poder ser eu, sempre que queira ser outro diferente.
Na parede existia uma janela pequena, onde me cabia a consciência e mais um bocado do corpo. As grades não me deixavam fugir. Agrilhoavam-me as crenças sempre que tentava sair.
Apenas a liberdade e um pouco de mim saiam amiúde para além dos muros. Ajudou-me um guarda a voar e a viver. Alargou-me as asas. Ensinou-me a batê-las e abriu-me a porta. A mim e a mais nove. Dizem os livres que voar em bando é mais fácil. Pena que o guarda de tanto ensinar, se esquecera de apreender.
Fugir, embora pareça, é bastante diferente de ser liberdade.

Que se batam as asas, que enquanto batem, parecem sempre que são livres. 



E.M.Valmont

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

O chapéu das memórias

O homem de idade movia-se com a dificuldade de quem ao mesmo tempo é elegante. Esperava-o o banco de um jardim por trás do cemitério. Sempre o mesmo jardim. O mesmo banco e por trás, sempre o mesmo cemitério. A distância entre o passado e o futuro era ali muito curta, assim como acidentada. Se no mover rápido das damas, a intercalada frescura mental o fazia relembrar a juventude, os muros altos do cemitério como que se abriam, abraçando-o num gesto de bom anfitrião.

A sua mulher morrera de cancro.
As saudades eram suportadas pelo vento que lhe dificultava a leitura do jornal. Ainda ontem se lembrou dela e chorou apenas de uma vista. Embora velho, não gosta de chorar em público. Faz mal à humildade. Ele fora o primeiro a ficar viúvo e também por isso, sabe melhor que os outros que a morte fica para além daqueles muros. Amanhã é quinta-feira. É dia de visitar a campa da mulher e de lhe mudar as flores. Costuma fazer isso pela manhã, pela fresca, porque o incomoda visitar o futuro por livre e espontânea vontade. De tarde não joga damas porque está deprimido e precisa de tempo para ficar sozinho. Nessa tarde prefere ouvir rádio e comprar fruta.
As noites chegam sempre com o tirar do chapéu. Talvez pela última vez. Era um chapéu parecido com aquele que tinha quando conheceu a mulher. Comprou sempre iguais ou parecidos; os chapéus conservam melhor as memórias. E este era um bom chapéu. Colocou-o no bengaleiro onde sempre colocou as alegrias e as tristezas da vida.
Depois jantou, adormeceu e acabou por morrer…


Morreram dias mais tarde as flores da campa. Parece que choravam em silêncio, como sempre o fizeram.

Valmont